Libertando-se da Compulsão

Eu devia ter uns seis aninhos quando fiz um jogo de bicho, pela primeira vez, e ganhei! Fiquei radiante de alegria e imediatamente comprei bola, pipa e carretel de linha. Lembro que naquela época, minha mãe lavava e passava muita roupa para o sustento da casa. No tanque, acendia um cigarro atrás do outro, enquanto os unheiros purgavam nas mãos doloridas. Eu, pequeno, já entendia tudo e não gostava nem um pouco de ser pobre. Queria ter bola, brinquedos e comer maçã - fruta que na época custava muito caro. Por isso vibrei ao ganhar a primeira aposta.

Minha mãe também jogava e ganhava muitas vezes no bicho - pelo menos era essa a impressão que eu e toda a vizinhança tinha. Quando ganhava no bicho ela comprava doces e distribuía para as crianças. Como ela não sabia escrever, recorria a mim para fazer seu jogo. Então, logo cedo, decorei a tabela dos bichos. ​

O tempo passou e eu vez ou outra jogava, sem exagero, até porque adolescente nem tinha dinheiro para isso. Fiquei adulto e comecei a trabalhar. Continuei jogando pouco porque pouco ganhava.

Quando me casei, no início dos anos 80, meu jogo já não era normal. Além do bicho, jogava nas loterias esportivas e loterias de número. Tinha a esperança de ganhar uma bolada e resolver todos os problemas financeiros que sempre me acompanharam. Nessa época, surguiram as primeiras maquininhas de vídeo poker que foram instaladas nos botequins do Rio de Janeiro. Comecei a perder instantâneamente todo dinheiro que tinha no bolso jogando vídeo poker e respirei aliviado quando aquelas maquininhas foram recolhidas pela polícia. No entanto, continuei jogando nas loterias e jogo de bicho...

Ao entrar para o serviço público ganhei conta bancária e talões de cheque. Ganhei também o assédio de agiotas que, naquela época, circulavam na repartição. Comecei a me endividar com eles para manter o volume de jogo que crescia cada vez mais. Chegaram os filhos: o primeiro em 87 e dois gêmeos em 89 - eu estava encrencado! Embora ganhasse um pouco melhor, já estava jogando muito mais! Fazia estrepolias pegando dinheiro com um agiota para pagar ao outro e vice-versa! Quanto mais desesperado ficava, mais aumentava meu jogo! Nos finais de semana eu não ficava em casa e sim na praça, jogando cartas com os idosos ou jogando tranca (a valer) com outros jogadores. Minha mulher, repetidas vezes, aparecia na esquina já à noite, de mãos na cintura e perguntando se eu não iria almoçar! Envergonhado ía para casa ouvindo poucas e boas e prometendo a mim mesmo que não faria mais aquilo, até que no próximo fim de semana tudo se repetisse... Eu não sabia lidar com os meus problemas, por isso ficava jogando na praça, agravando-os ainda mais.

Outras modalidades de jogos surgiram no cardápio dos jogadores compulsivos brasileiros: raspadinhas, senas, novas maquininhas... levando-os à bancarrota mais rapidamente. Em 1991, desesperado procurei ajuda em Neuróticos Anônimos, depois de ligar para os Alcóolicos Anônimos pedindo uma suposta ajuda. O atendente de AA falou ao telefone: "Você deve procurar os Neuróticos Anônimos que eles vão lhe ajudar!" - naquela época não havia grupos de Jogadores Anônimos em funcionamento no Brasil. Depois de muita relutância procurei o N/A.

Antes de chegar ao N/A estava fortemente compulsivo. Não podia pegar em dinheiro que iria jogar. Por mais que eu prometesse a mim mesmo - e eu não queria mais jogar - mas não conseguia. Estava perdendo todo meu salário no dia do pagamento. Já mentira dizendo que tinha sido assaltado no dia do pagamento. Já não tinha mais desculpas quando, certo dia, joguei de novo todo o salário e não sabia como encarar a mulher e três filhos, que me esperavam com as contas a pagar e o supermercado a fazer. Naquele dia, quase me joguei embaixo de um carro na Av. Pres. Vargas, mas num arroubo de esperança tive a ídeia de procurar o Pinel. Lá me deram uma injeção e me mandaram para casa, recomendando-me que procurasse um psicólogo. Em casa atirei-me na cama e contei, sabe Deus como(!), à mulher assustada que perdera o dinheiro no jogo e que precisava de ajuda. Meu irmão chegou para me socorrer dizendo que aquilo ía passar e se eu tivesse força de vontade, não voltaria a jogar. Eu sabia que não era assim: estava tentando ter forças à muito e nada adiantava. Então fui procurar o N/A.

​Em Neuróticos Anônimos fui muito bem recebido, apesar de não haver nenhum jogador compulsivo naquele grupo formado para pessoas que têm depressão, fobia, pãnico e outros sintomas emocionais. Tive contato com o Programa de Recuperação dos 12 Passos e já podia falar de meus problemas emocionais e de jogo. Deu certo e eu parei de jogar - o mais importante: não tive mais vontade de jogar com menos de três meses frequentando o grupo. Ali continuei me aprofundando no conhecimento do Programa de Recuperação e participando ativamente. Sentía-me aliviado e feliz. Passei a acompanhar os membros de Neuróticos Anônimos nas divulgações da irmandade junto aos médicos.

A partir de 1993, já com dois anos de abstinência do jogo, dei sequência à minha recuperação em Jogadores Anônimos. Por isso, posso afirmar àqueles jogadores compulsivos que estão distantes dos grupos de JA que é possível parar de jogar frequentando qualquer grupo anônimos baseado nos 12 Passos de recuperação - desde que este grupo aceite o jogador como frequentador. Basta ao jogador que possua o desejo de parar de jogar e não meça esforços para obter este intento.

​Hoje, sinto-me recuperado da compulsão e venho tendo uma vida normal feliz - longe do jogo.

Abraços!

Rio de Janeiro

Se você quer parar de jogar ou se você é um familiar ou amigo de um jogador compulsivo e gostaria de ajudá-lo escreva para nós. Mande um e-mail para contato@grupojaonline.com.br